Crónica do invisível (I). O mar em Lisboa
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Concha Rousia
- Mas que há de novo lá por Lisboa?
- Coisa má nenhuma, somente ouvi dizer que o mar se volvera papas...
Partimos de Padrão, dai fomos a Pontevedra, onde se uniu a nós o quinto ocupante do carro. Martinho mostrou-nos o ponto exacto onde mataram Alexandre Bóveda. Sentimo-nos muitos no carro, mais dos que éramos, e éramos muitos...
O trajecto até Lisboa foi um fio de palavras. As conversas foram connosco, o já feito, o por fazer... O cansaço tomou logo conta dos corpos, paramos, Ângelo pode assim descansar os olhos enchendo-os de verde em lugar do negro do asfalto. Tiramos a primeira foto. Eu lembrei-me, como é meu costume, de todos os que estavam connosco sem estar... entre eles Rosalia, entre eles Bóveda, entre eles a minha mãe a me ensinar o cantar da joaninha:
“Voa joaninha voa, que teu pai vai em Lisboa, e vai-che traguer pão e cebola...” –deves repetir até que a joaninha voar...
E a canção do “Malhão” que eu sempre julguei era galega e depois foi que aprendi que o não era. Aqueles foram tempos em que eu vivia de verdade imersa na lusofonia... e as nossas casas feitas polos castrejos de Castro Laboreiro, e o senhor João, e o Freitas que traz café, sabão, e as duas mulherinhas de olhos gázios, mãe e filha, a nós trazer os panos de cozinha, os refaixos, e as toalhas, e a feira de Santos de Montalegre... e os bois, e a chega, e subir as calças, e os guardinhas sempre a perguntar:
- Mas que há de novo lá por Lisboa?
- Cousa má nenhuma, somente ouvi dizer que o mar se volvera papas.
- Mas isso não pode ser...!
E atravessar um lameiro e do outro lado é Portugal... “Mas como pode ser isso?” De crianças procurávamos entender o que era a fronteira; depois fomos aceitando que era invisível, que era algo no que se falava, algo que nos obrigava a ir classificando tudo...
A canção do Malhão é portuguesa... A da Carolina é galega. Eram tempos sem televisão, e as rádios, como nós, também não aprenderam a parar suas ondas em raias imaginárias e nós sentíamos Montalegre ali pertinho. É estava mesmo.
Hoje o mundo recoloca-se todo dentro de nós e as conversas vão servindo de apoio a este processo que vai tendo lugar em cada um de nós... e o acordo do 86, e o do 91, e os que chegaram a Lusofonia pola via do estudo e a análise profunda, e os que simplesmente nascêramos ali, e depois se nos arrancou para nos transplantar na Hispanofonia... Eu fui desses que não chegaram a prender; e hoje mentes o carro vai bebendo os ventos que nos falam do futuro, vamos abraçando naquinhos esquecidos do nosso passado... E como sempre, era à terceira que os guardinhas eram enganados...
- Mas que há de novo lá por Lisboa?
- Coisa má nenhuma, somente que quando eu vir, vi como a gente toda, grandes e pequenos, homens e mulheres, iam com colheres a correr para o mar....
- Aió, pois olha que vai ser certo que o mar se volvera papas...!
E os guardas do nosso jogo corriam também para o mar, e a raia era livre e nós passávamos de um lado para o outro vencedores ao final.
E chegamos a Lisboa; ao pouco tempo veio o Estraviz e Manuela, e depois Alexandre e Margarida; Joel ligou para nós, ao telefone de Ângelo, e combinamos para o dia a seguir, o dia da Assembleia da República. E lá estava eu, começara enganando a uns guardinhas há perto de quarenta anos e agora era eu a que viera até Lisboa com a minha colher. Era tarde, mas ainda levávamos trabalhinhos para ser acabados no silêncio dos nossos quartos. Foi um momento no que eu agradeci todos os conselhos que me foram dados. Dormimos.
De manhã, logo de um pequeno almoço, ao que, a meu modo de ver, o nome não lhe liga nada bem, fomos para o Palácio de São Bento; uns de metro e outros no carro de Margarida para carrejar os livros; já lá estavam Teresa e Rodrigo. Fomos os primeiros em chegar, os galegos e galegas chegamos mesmo antes de que se abrissem as portas.
Éramos onze em total, todos convidados pola Assembleia. Todos respeitados como membros da Lusofonia, e assim nos receberam, e assim no-lo fizeram sentir também os primeiros portugueses que foram chegando, reconhecendo aos mais velhos entre nós, falando em encontros passados, e fazendo sonhar aos mais novos com um dia ser assim reconhecidos polos que hoje aqui encontrávamos.
A manhã começou a ir deixando passar os oradores. Abriu a sessão o Presidente da República; a seguir falou o presidente da Academia de Ciências de Lisboa; depois veio Bechara e o abraço morno do Brasil; falou também o representante de São Tomé e Príncipe; e finalmente, com uma energia que se fez notar, fechou esta sessão a Presidenta do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (CPLP).
Antes de a gente ir a almoçar, os corredores se encheram, as mãos se encontraram, os cartões e os livros mudam de lugar, os sorrisos, os jornalistas, as televisões, o descanso, a imensa escalinata, o bacalhau, o vinho verde, a sobremesa e o café, ai o café... o café aqui é outra cousa, o café aqui é “o café”...
De volta na nobre sala continuou a jornada. Falou o primeiro dos convidados, Vasco de Graça Moura, que não soube estar a altura de si mesmo, talvez por ele se saber perdedor antes de abrir a boca. Atrás dele falou Carlos Reis, que o derrubou com a primeira frase, e continuou a falar com palavras e com suas mãos e com seus olhares vivos e sinceros, e com verdades... e no momento da pausa todos o quiseram cumprimentar e nem foi possível para todos conseguir isso. Na pausa voltaram as conversas e os abraços e os irmãos que nos chamaram de irmãos... sim, definitivamente, por incrível que pareça, o mar se volvera papas e eu fora lá convidada.
A pausa foi breve e pronto voltamos todos à sala. A mesa estava agora integrada polos representantes dos diferentes grupos parlamentares, e ante eles falaram todos os da audiência que tinham turno para isso. Começou a sessão Malaca Casteleiro. Ele estava sentado do lado dos galegos, junto dele estava Bechara, e o outro dos três daquela bancada era Estraviz; eu tive o privilégio de tirar a foto. Lá permaneceram os três, eu lembro ter pensado que nem sempre é por acaso que o destino junta a gente.
Atrás de Casteleiro falaram o resto de oradores; todos se foram alinhando com o discurso de Carlos Reis e o apoio ao acordo ortográfico, com alguma excepção, como a do livreiro que parecia magoado por ter que destruir tanto livro como há na norma antiga... e ele não reparou em que isso nunca se tem feito ao longo da história, se isso se fizer poucos livros de valor haveria nas bibliotecas das Academias; mas enfim, ele falava em nome dos livreiros...
Finalmente chegou a nossa hora, a hora dos galegos... Eu estava sentada no meio, equidistante entre Alexandre e Ângelo, os nossos oradores; agora era a nossa voz que ia encher a sala. Primeiro falou o Alexandre, e todos falamos com ele; depois falou o Ângelo, e todos falamos com ele.
Falamos bem e fomos cumprimentados depois, saudados, parabenizados, e até talvez por algum, temidos, os galegos... Nós, contentes, nossa pertença a Lusofonia tornara-se o que tinha que ser: óbvia... Não podemos saber aonde poderemos chegar, sabemos é que lá chegamos, e sabemos que vínhamos de muito longe e não nos vamos precipitar agora que estamos mais perto... Nós entraremos onde quer que tenhamos de entrar...
Como lhe dizia o Ângelo ao representante do PCP “Os galegos entramos na Lusofonia pola porta grande” E eu reparei que as portam eram muito grandes, e como no conto dos guardinhas, que deixavam o passo livre, estas portas foram abertas para nós passar... E nós passamos, e nos sentimos em casa, aquele espaço era nosso.
Com o final da tarde vieram as despedidas e os planos de futuro. Mas o dia ainda não ia acabar ai para nós que estávamos sendo aguardados no Baixo Chiado, lá na Brasileira, polos membros de AGAL de Lisboa que nos prepararam uma festa que coroou um dia que nascera republicano... Na porta da Brasileira, sem medo da chuva que nos seguira até Lisboa, tiramos nossas fotos com Pessoa, mesmo parece que levava muito tempo a nos aguardar... (a seguir)
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