Concha Rousia
Se existisse o tempo, nossa seria a agulha de coser os dias, ou, como preferimos os de coração celta, de coser as noites, à luz da Lua, com a Coruja como testemunha e o Lobo guardando a distância.
Mas, mesmo o tempo sendo provavelmente um invento das nossas mentes, é nele que nos movemos, um tempo que medimos por minutos, por décadas, e mesmo por séculos, e ainda por vezes, por segundos... ora que alguns de nós temos que o medir por séculos de injustiças num relógio alheio, que espeta em nós as agulhas do tempo que eles sonham apenas seu, enquanto sentimos que nos matam, eles matam-nos mas nós morrer não morremos, pola contra, nós fazemo-nos mais fortes como ancestrais chineses que somos, mesmo não sendo chineses, mas sendo, sem nenhuma dúvida, o mesmo Ser.
E chegou o dia de celebrar Galiza, ou a noite, que para nós é a que une o 24 com o 25, e bem podia ser outra qualquer... Este ano, num contexto de desesperança polo cenário político no que sentimos desfazer-se o nosso mundo, com o feche dos jornais digitais Vieiros e Chuza, participamos nós como Instituto Cultural Brasil Galiza, por primeira vez no dia nacional da Galiza.
Fizemo-lo irmanados com a associação Pró-Academia Galega da Língua Portuguesa, que em certo modo é a mãe da AGLP, da mesma forma que o Instituto, é em parte, filho da AGLP; e fizemo-lo com uma mestiçagem dos dous mundos, harmonizando as duas beiras do mar, do mar que fala a nossa língua, como fala outras, porque o mar fala todas as línguas, todas cabem na boca salgada e infinda do mar... Esse mar que estava presente em nosso imaginário; ajudavam duas bandeiras, a do Brasil e a da Galiza, fazendo de velas movidas por um vento providencial, que batia em nossa nave, uma imensa e majestosa árvore que foi ademais refúgio face ao implacável sol de julho.
Na cantina da nossa nave servia-se uma bebida criada por nós: a ‘caipirega’ (caipirinha feita com aguardente galega). Foi um mar de gente a que se passou a experimentar essa nossa poção mágica e à vez iam aprendendo quem éramos nós, quem era a tripulação do ICBG que tal como os membros da Pró, na mesma nave, vestia camisolas pretas que também foram criadas para a ocasião, e nelas dous pássaros, um papagaio e uma pega, falavam... Lindas, desenhadas polo Xico Paradelo, que também foi remador na nossa caravela na que vamos resgatar o velho mundo, levando em nosso porão o que mais amamos deste novo... remamos tantas e tantos companheiros que seria interminável a listagem, e eu iria esquecer alguém, mas há uma pessoa que merece menção de honra, essa é a Nerea, minha filha de 10 anos, que talvez por ter nascido do outro lado do Atlântico, lá nas Américas, ou por ser ninfa, entende muito de atravessar oceanos...
...trabalhou como nunca na sua vida toda trabalhara, hora após hora, até mais de cinco seguidas, ajudando a preparar as ‘caipiregas’ e os cafés, e dependurando as nossas mercadorias para atrair o público, variado e amigo... e junto de Nerea não quero esquecer a pequena Aldara, filha do secretário do ICBG na Galiza, que com seus 6 meses de idade se inaugurava às festas da Galiza como o próprio ICBG, e ela deu o que tinha, sua atenção, tão entregada estava à festa que sua mãe não conseguia que atendesse a mamar, pressenti nela já a futura guerreira...
E do outro lado da ponte do nosso navio estavam os amigos do PT do Brasil, onde a Jeanne e o José informavam sobre o partido dos trabalhadores do Brasil; nem seria preciso mencionar a irmandade de nossos barcos, que para além de amigos se sabem irmãos... e a máquina de picar o gelo da bancada do PT Brasil, onde a Jeanne, no mais puro estilo brasileiro, servia caipirinhas, ia e vinha para trabalhar duplo até que os das caipiregas conseguimos o nosso próprio pica-gelos...
Por nossa beira foi passando e parando a gente, e nós, ora um, ora outro, fomos também de visita a outras bancadas e atos... Saliento dous, aos que eu consegui assistir, e num até participei; esse foi a apresentação dos Cantares Galegos de Rosalia de Castro que o académico Higinio Martins adaptou com um mimo extraordinário. Na apresentação participou o editor Heitor Rodal, que veio desde a Barcelona para apresentar vários livros da sua editora no Festigal 2010; participou também Ernesto Vázquez Souza, académico responsável da edição deste clássico da AGLP, primeiro livro da coleção; a mim coube-me a honra de abrir e fechar o ato sendo a voz dos poemas de Rosalia...
(...)
Cantar-te-ei, Galiza,
teus doces cantares,
que assim mo pediram
na beira do mare.
Cantar-te-ei, Galiza,
na língua galega,
consolo dos males,
alívio das penas.
Mimosa, suave,
sentida, queixosa,
encanta se ri,
comove se chora.
Qual ela nenhuma
tão doce que cante
soidades amargas,
suspiros amantes,
mistérios da tarde
murmúrios da noite;
cantar-te-ei, Galiza,
na beira das fontes.
Que assim mo pediram,
que assim mo mandaram,
que cante e que cante
na língua que falo.
Que assim mo mandaram,
que assim mo disseram...
Já canto, meninhas.
Cuidai, que começo.
(...)
Foi entre amigos, nossos e de Rosalia, foi uma hora para medre e desfrute da nossa alma galega.
A seguinte apresentação à que antes já me referi foi a do Sempre em Galiza de Castelão, que assim como os Cantares de Rosalia abriram o Festigal, este encerrava-os, como duas chaves mestras das portas que se reabrem para levar os nossos clássicos a verdadeiramente se universalizarem no contexto lógico, e até se poderia dizer que natural, da nossa língua. Para falar do Sempre estava Miguel Penas representando a Através, editora da AGAL; estava também Camilo Nogueira, um dos primeiros políticos galegos em usar a nossa língua no Parlamento Europeu, defensor incansável da unidade da língua galego-portuguesa, e batalhador incansável a quem eu há já tempo que aprendi a admirar.
E por último falou Fernando Corredoira, as mãos e a mente que dialogaram durante longos dias e anos para achegar a obra de Castelão aos leitores de hoje, especialmente aos que a desconhecem mesmo sendo obra da sua língua, os leitores da Lusofonia. Corredoira leu o texto introdutório que ele fez para a obra, e entregou nele tudo o que era preciso saber para entender o seu trabalho... E aí acabou o Festigal literário, que se continuou com os concertos...
Arriamos velas, as bandeiras brasileira e galega, que já presenciaram juntas a inauguração do ICBG no Instituto Federal de Santa Catarina, Br, em março deste mesmo ano, e guardamos as nossas cousinhas, especialmente as lembranças de futuros que nasceram hoje...
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