Entrevista a Carlos Reis, reitor da Universidade Aberta de Lisboa
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"A AGLP deve bater-se pela ideia de que o galego
não é uma língua em divergência com o português"
José Ramom Pichel / Valentim R. Fagim - Carlos Reis é um dos professores mais reconhecidos em Portugal e um firme defensor do Acordo Ortográfico para o português. Grande amigo da Galiza, já em 1983 apoiou a proposta de integração do nosso País na Lusofonia, quando apresentada por uma delegação galega no contexto do I Congresso da Língua Portuguesa.
Atualmente reitor da Universidade Aberta de Lisboa (da qual foi fundador), é Catedrático da Universidade de Coimbra, e no seu amplo currículo podemos salientar que foi diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa, diretor do Instituto de Estudos Espanhois de Coimbra, presidente da Associação Internacional de Lusitanistas, tem coordenado a edição crítica da obra de Eça de Queirós e participou na Conferência Internacional/Audição Parlamentar sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa realizado na Assembleia da República portuguesa em 7 de Abril de 2008.
Estivemos com ele no passado dia 6 de Outubro, data em que esteve em Compostela dando apoio à Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), no dia da Sessão Inaugural das suas atividades.
Como é visto por um português médio a existência na Espanha de uma Academia Galega da Língua Portuguesa?
Nesta altura acredito que não seja ainda uma iniciativa muito divulgada. Mas quando for, eu acho que o português médio vai sentir orgulho nisto, por que vai perceber que a língua portuguesa, além dos espaços em que é normalmente falada (o Brasil, Angola, Moçambique, etc.), tem ao norte de Portugal um espaço possível de afirmação.
Portanto, acredito até que isso seja um factor importante para fazer o português médio perceber o recuperar a ligação histórica que existe entre Portugal e a Galiza.
A respeito do acordo ortográfico, às vezes observa-se uma confusão entre ortografia e outros aspectos da língua, nomeadamente pronúncia, morfo-sintaxe e léxico. Acha que as posições contrárias a respeito do Acordo Ortográfico nascem da ignorância ou da má vontade?
Nalguns casos eu creio que nasce da ignorância e noutros casos nasce de uma má vontade criada pela ignorância. A verdade é que eu até posso compreender, de um ponto de vista emotivo, estas reações por que a ortografia é um aspecto da língua que está muito ligado ao nosso corpo. Nós escrevemos com a mão e isso cria uma espécie de ligação indireta entre a língua e o corpo; mudar a ortografia para muita gente é, um pouco, como mudar o corpo.
Se a pessoa não tiver a noção de que a ortografia tem muito de convencional e, sobretudo, se não tem perspetiva histórica do que foi a mudança da ortografia ao longo dos séculos, acho que – e eu respeito isso, mudar a ortografia é mudar ela mesma, e de aí resulta uma tremenda confusão entre o código da escrita, que é muito convencional, e a identidade cultural, linguística etc.
E isso que para algumas pessoas é uma confusão para muitas outras é uma atitude emocional que eu posso compreender, sobretudo quando as pessoas não se lembram de que ao longo dos séculos a ortografia foi mudando e as pessoas foram ajustando o seu corpo à ortografia.
E um pouco como – todos nós temos esta memória, há vinte anos escrevíamos em computadores grandes, com teclados grandes, há trinta anos escrevíamos com uma caneta, hoje escrevemos em computadores pequenos e o nosso corpo foi-se adaptando a isso e com a ortografia vai acontecer a mesma coisa.
Acha que se a Galiza se somasse ao Acordo facilitaria que houvesse mais projectos em comum Portugal-Galiza-Brasil? Por exemplo, no campo dos computadores, nas tecnologias da informática...
Claro. Sobretudo se o ato de compartilhar esse espaço viesse a ser, como acho que deve ser, não apenas compartilhar palavras mas conceitos, atitudes mentais, representações. Não apenas palavras, mas aquilo que elas trazem consigo.
E é por isso que eu acho que seja importante. A seguir ao Acordo Ortográfico – não antes como alguns disseram, mas a seguir, entendermos quanto há de vocabulários técnicos, terminologias, etc. E aí o mundo da informática é fundamental, por que é um mundo que hoje atravessa todos as áreas do saber e nós falamos com metáforas da informática no falar comum sem nos apercebermos.
Depois do Acordo Ortográfico vêm os factos, os trabalhos, seleções e elencos de palavras que nos digam o que é que um conceito significa nos vários portugueses, no português de Portugal, do Brasil, da Galiza, de Angola, e que se encontra aí uma comunhão de conceitos, mais até que a ortografia.
Pensa que a utilização de metáforas como «sabores da língua» podem ser uma boa maneira para ligar melhor para a gente que não tem muito a ver com a linguística?
A expressão «sabores da língua» é muito interessante, porque é aquele domínio da língua em que salvaguarda o que há diferente, sem ser uma ruptura, entre uma forma de falar português do Brasil, Portugal, Galiza... que não ponha em causa a ruptura da língua.
A utilização de metáforas como «sabores da língua portuguesa» é muito importante para sabermos que a unidade da língua não é afectada por estas oscilações, são mais de natureza lexical, terminológica do que de natureza ortográfica. Eu posso escrever a mesma palavra da mesma forma em Portugal, no Brasil, em África ou na Galiza, mas ela significar diferente. Mas, para mim a ortografia o que é esse poder de manter a língua com alguma unidade. E este é um motivo muito importante a sublinhar por que nem sempre é bem avaliado.
Nós – é um discurso muito corrente em Portugal, falamos muito na necessidade de respeitar a diversidade da língua, a criatividade. Acho ótimo, mas é preciso ter em conta que essa dinâmica tem um preço, e esse preço chama-se a fragmentação da língua. A ortografia é essa convenção onde esta fragmentação controla. É muito bonito falarmos nos 230 milhões de falantes de português, mas se ao mesmo tempo nós estimularmos a fragmentação da língua, de daqui a cem anos esses 230 milhões de falantes já não existem. E repito, a ortografia é para mim o domínio onde se mantém alguma coesão sobre a língua.
Quais pensa que deviam ser os passos primeiros da Academia Galega da Língua Portuguesa?
Os passos que já deram são importantes, os outros que vêm a seguir, para o dizer de uma forma muito clara, acho que a AGLP, no meu ver, deve bater-se pela ideia de que o português é uma língua que existe naturalmente na Galiza, ou seja que o galego não é uma língua em divergência com o português.
Mas acho que é preciso ter muito cuidado, relativamente à questão política. Isto é, que a AGLP não significa um princípio de fratura política, um princípio de separação política, para que com naturalidade se aceite a ideia de que o português da Galiza é um pouco como o português em Angola, ou no Brasil ou em Portugal, sem trazer com isso outra coisa que não seja uma mera afirmação linguística.
Portanto, manter a questão da língua corno uma questão autónoma mas não como uma questão que arrasta fraturas de natureza política, a menos que os galegos entendam que deve ser assim. Esse é um problema dos galegos.
Em 1983 decorreu em Lisboa o 1º Congresso da Língua Portuguesa. Então, a professora Maria do Carmo Henriques e outros galegos apresentaram uma proposta para a integração da Galiza na Lusofonia, proposta que você apoiou. Pensa que tem havido avanços a respeito desde então?
Esta academia é a prova de que ideia fez o seu caminho. Ou seja, eu acho que o termo Lusofonia é mais abrangente e pacífico até do que o da Língua Portuguesa. Não se trata de um espaço propriedade de Portugal, mas um espaço amplo em que o português da Galiza está na mesma situação em que está o português do Brasil, da Angola ou da Guiné.
Portanto, de aí para cá esta ideia avançou e o que eu acho é que esta academia é como um instrumento regulador, uma prova de que há uma componente lusófona na Galiza.
Até que ponto o debate sobre o Acordo Ortográfico em Portugal é um debate político?
Eu diria que é mais um debate de natureza mental e psicomental do que político. Para muitos portugueses a questão do Acordo Ortográfico representa um problema mental com o Brasil, a dificuldade de reconhecer o papel importante que tem o Brasil hoje em dia na afirmação do português e a dificuldade de reconhecer de que o Brasil pode fazer mais pelo português do que Portugal.
É uma coisa que custa aceitar, que os portugueses pensem assim mas é uma realidade geocultural, geopolítica... Por exemplo, em Portugal há o Instituto Camões que trata da afirmação do português no estrangeiro, um instituto assim não há no Brasil só que o Brasil tem muitas outras formas - economia, música, literatura, moda, de afirmar o português internacionalmente. É uma outra forma, uma outra dimensão de ver o português e não comparar Portugal com o Brasil.
Essa comparação criou uma espécie de trauma. Muitos portugueses diziam «não tenho que falar como os brasileiros». A ortografia não sabe do falar. Isso traduzia é uma resistência à ideia de que o Brasil tem um papel ativo a representar aqui, e num futuro próximo também outro grande país que vai ser Angola... e quem sabe se também a Galiza.
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