"O povo das ilhas quer"

Alexandre Banhos e Maria Dovigo no I Congresso da Cidadania Lusófona

Crônica do I Congresso da Cidadania Lusófona. A afirmação da Sociedade Civil
Lisboa, 2-3 de abril, 2013

Maria Dovigo - Nos passados dias 2 e 3 de abril teve lugar na Sociedade de Geografia de Lisboa o I Congresso da Cidadania Lusófona sob o mote "A Afirmação da Sociedade Civil", promovido pela PASC- Plataforma Activa da Sociedade Civil e coordenado pelo MIL-Movimento Internacional Lusófono. A este apelo concorremos pessoas dos oito países da CPLP e de comunidades de língua portuguesa espalhadas por todo o mundo.

Havia motivos para que ali concorressem pessoas de outras comunidades linguísticas, pois o que lá foi falado foi sinal para a humanidade toda nestes tempos de fragmentação e procura. Levo tempo à volta desta utopia lusófona, conheço os trabalhos e os ideiais dos que nela estão embarcados, mas nunca como neste encontro senti estar a presenciar algo verdadeiramente genesíaco. A palavra cidadania é-me especialmente cara. Gostava de ter nascido em tempos dos construtores de cidades. O que lá vivi foi a fundação da cidade lusófona.

Nesta ágora falou-se, falámos, de tudo ao que a vida em comum diz respeito: a língua, com certeza, mas também a economia, a saúde, os direitos humanos, a educação, a cultura, a comunicação social, e, porque cidade lusófona é a nossa, o mar. Recebemos todos o apelo direto para nos assumirmos como cidadãos lusófonos, utopia ecuménica que lá conseguimos vivenciar. Ecumenismo que a língua permite, mas não determina. Pois se a língua é nossa, como foi dito, não é só nossa. E se a língua portuguesa é a nossa pátria, podemos sentir ali que a nossa pátria não é só a língua. Velho como a humanidade é o sonho de fraternidade que animou tantos depoimentos e anima este ideal lusófono; velho e frustrado. Mas dizem que o homem é o animal dos recomeços. Difícil transmitir o cuidado e as chamadas de atenção ali invocadas para que este ideal não fosse legitimação de discursos neocoloniais ou ocultação da verdade. Mais difícil ainda contar como cada um de nós, cada nação ali convocada, busca nesta utopia lusófona uma salvação diferente. Os portugueses, uma alternativa ao beco sem saída ao que o está a levar o falido projeto europeu. Mas, as diversas nações africanas? E os timorenses? E o Brasil? E nós, o que é que os galegos buscamos ou podemos esperar desta cidadania lusófona?

Com esta pergunta na mente vou ouvindo propostas que são como pedras para construir a nossa cidade nova: políticas de língua convergentes e dificuldades para harmonizar identidades nacionais e identidade lusófona; criação de instrumentos filológicos válidos para a projeção internacional da língua neste mundo que transmigra, onde tantas pessoas, como nunca na história, estão fora do seu espaço nativo; atenção ao tratamento que se lhes dá em Portugal aos lusófonos africanos; combate à carência de cuidados médicos nos países lusófonos; combate à tortura e à cultura da tortura que continuou nas colónias; criação de um cânon literário lusófono; utilização das novas tecnologias para a circulação de ideias e informação; os eventos desportivos imediatos que transformarão a realidade da língua portuguesa; o mar como desígnio estratégico; propiciar a criação de uma plataforma de associações lusófonas, um dos objetivos do congresso... Também a criação de referentes simbólicos, como o hino da Lusofonia estreado na Festa da Lusofonia com que concluiu o primeiro dia do congresso.

Renato Epifânio (MIL) e a Dra Maria Perpetua Rocha (PASC) no I Congresso da Cidadania Lusófona

Renato Epifânio (MIL) e a Dra Maria Perpetua Rocha (PASC)
no I Congresso da Cidadania Lusófona

A sessão que ocupou a última tarde abriu-se a todas as vozes do espaço lusófono. Ali se ouviu a minha voz representando à nossa Pró e a de Alexandre Banhos da Fundação Meendinho. Quis a ordem alfabética, uma ordem que aceito como mais lógica do que muitas hierarquias que nos são impostas, situar-nos entre Cabo Verde e Goa. Eu, pessoalmente, sinto-me especialmente à vontade entre estas comunidades das diásporas, porque sei que a história fez de nós diáspora. Embora não possa deixar de sentir que a língua que todos falam tem a marca da nossa terra, onde nasceu, não posso deixar de sentir que nos calhou o destino de lutar pela nossa sobrevivência, como muitos deles lutam, e que a nossa língua, em tão longínquas ilhas, se fez outra.

Ainda no marco do congresso fez-se a entrega do prémio personalidade lusófona, que este ano foi atribuído a Domingos Simões Pereira, guineense, ex-secretário executivo da CPLP. Em palavras de Renato Epifânio, presidente do MIL, o prémio quis ser um sinal relativamente ao povo da Guiné Bissau, uma prova de confiança no seu futuro e no que o premiado pode fazer por ele. Agradeceu Domingos Simões Pereira em nome do seu povo e da sua família, lembrando a frase de Amílcar Cabral de que “a nossa luta não é contra o povo português”, mas sim contra o analfabetismo e a pobreza e a favor da paz. Seja essa, então, a luta de todos os lusófonos. Eu, mulher galega, bem ciente da nossa história de luta contra a miséria e a ignorância, sumo-me a esse combate pela dignidade do homem.

Porque afinal disso se trata, da dignidade do homem no seu tudo, de uma vida que mereça ser vivida, de um mundo que mereça ser habitado, de conhecer, de conviver, de construir, de amar. O professor Adriano Moreira saudou-nos na conferência de abertura a invocar a esperança num homem novo, a nos dar a imagem real do que entre todos estávamos a desejar e a dar corpo. E porque a liberdade é condição essencial à criação, lembrou-nos que a CPLP, o ideal lusófono, era janela de liberdade para Portugal, para um Portugal que ainda se pode reinventar, para um homem que pode começar de novo. Nenhum outro povo europeu tem esta utopia na mão. Lembrou ainda as velhas legitimidades que deram raiz a antigas aventuras históricas: a legitimidade dos reis, a legitimidade dos povos... Novos tempos, novos conceitos, novos reptos a ganhar. A sociedade civil é ainda um conceito muito recente. Temos, penso, que ganhar a nossa legitimidade. Também a Galiza, sem reis, sem povo, mas com uma sociedade que, conhecedora de si e dona dos seus destinos, desperta como a sonhou o bardo, tenha voz própria nesta grande ágora lusófona que está a nascer. Trabalho não nos falta.

 

O professor Adriano Moreira no I Congresso da Cidadania Lusófona

O professor Adriano Moreira no I Congresso da Cidadania Lusófona

A cidadania lusófona é em grande medida ainda uma utopia. Temos ainda muito caminho até conseguirmos concretizar propostas concretas como o passaporte lusófono ou o Erasmus lusófono, ideias lançadas pelo MIL nos seus poucos anos de história. Entraves jurídicos, entraves mentais para essa fratria sonhada por Agostinho da Silva que, se bem se concretizou na fundação da CPLP, precisa agora de convocar as forças de uma sociedade civil que se afirme e se construa à volta desse ideal. Provista da minha utopia bárdica, ouço com especial clareza a voz dos poetas, porque poetas abriram janelas na nossa história escura. Ouvi a voz do poeta cabo-verdiano Onésimo Silveira na voz de Celina Pereira, com quem partilhei mesa e palavra, a nos mostrar a nossa imagem de sonhadores de ilhas, o espaço da irmandade e da imaginação, da viagem e do encontro, afirmando o que nós queremos, com alegria e esperança. Nós, cidadãos lusófonos, demandamos a nossa utopia, nós, o povo das ilhas, queremos um poema diferente, sem fome, sem exclusão, sem exílios, sem medo, sem miséria, sem racismo... Um poema sem homens que percam a graça do mar e a fantasia dos pontos cardeais. Que assim seja se assim o desejamos.

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